25 de Abril

Às Forças Armadas e ao povo de Portugal


"Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade"

                                              Jorge de Sena


        Cantiga de Abril

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
e conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitério
toda prisão ou censura.
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerra de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim, altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

  1974

Jorge de Sena


O Berlinde do Janica

As crianças estavam tristes e carrancudas, os berlindes no fundo das algibeiras, as bocas cerradas e firmes. Um sol de inverno fingia afagá-las, convidava-as a saltar, a brincar. Mas ninguém sentia desejos de correr pelo largo que se estendia a seus pés: sentados junto do muro alto que lhes servia de abrigo e de encosto, os miúdos nem sequer fumavam as beatas apanhadas nos dias anteriores pelas ruas e cafés, durante as suas deambulações sem finalidade aparente.
Eram seis, mas, na semana passada, eram sete. O Janica morrera e enterrara-se ao princípio da tarde. Poucos dias estivera doente em casa, fora-se deste mundo quase de repente. Pneumonia dupla, dissera o médico. Como lhes era habitual, assim que saíram do cemitério, os companheiros do Janica dirigiram-se para o sítio preferido, o largo da Feira, enorme e cheio de sol. Afinal, verificaram, angustiados, que não podiam brincar naquele dia nem talvez nos outros: o Janica morrera.
O Álvaro tirou um berlinde colorido da algibeira. Os mocinhos olharam tristemente para aquilo.
- Era do meu irmão…Lembram-se? Deu-me antes de morrer.
Todos sentiram um nó na garganta. Mas Álvaro continuava fitando a pequena esfera de vidro.
- Não sou capaz de brincar com ele. Nã sou. E os seus olhos encheram-se de lágrimas. Os amigos rodearam-no
- Deixa lá, Álvaro – disse o Talica – eu tenho uma ideia. Vamos enterrar o berlinde do Janica.
Acharam o alvitre bom. Próximo dali o terreno era quase arenoso, podiam fazer uma cova sem grande dificuldade. O Toino encontrou um pau pequeno e pontiagudo, começou logo a cavar rapidamente. Um a um todos o ajudaram e abriram uma cavidade estreita e funda. Em seguida Toino colocou um papel de jornal na abertura e empurrou-o até encontrar chão firme. O Álvaro, de mão a tremer, mostrou o berlinde uma vez mais aos companheiros, beijou-o levemente, e empurrou-o com todos os cuidados para dentro do buraco. Todos ouviram, então, o suave baque da queda do objecto sobre o papel. Mas sucedeu uma coisa imprevista e maravilhosa: como se uma força desconhecida os obrigasse a isso, o grupo inteiro tirou os seus berlindes dos bolsos esfarrapados e jogou-os para dentro da cova. Tudo isto num silêncio impressionante, apenas cortado pelo tilintar alegre que veio das entranhas da terra.
Taparam meticulosamente o buraco, calcando bem a terra sob os calcanhares descalços. À superfície não deixaram qualquer aviso. Pelo contrário, durante algum tempo estiveram a destruir todos os indícios de uma escavação recente. Quando sentiram dúvidas acerca do verdadeiro local é que se retiraram novamente para o muro alto e branco e ali se conservavam em silêncio até ao fim da tarde.
António Macheira in Até Amanhã, Meu Filho