Examinador

Em criança fiz um exame.
O teste era tão simples
que não havia maneira de falhar.
P1. Descreve o sabor da lua.
Sabe como a Criação, escrevi eu,
tem o sabor da luz das estrelas.
P2. Qual a cor do amor?
O amor tem a cor da água
encontrada por um homem no deserto, escrevi eu.
P3. Por que derretem os flocos de neve?
Respondi que derretem porque
caem na língua quente de Deus.
Havia outras perguntas.
Todas elas também bastante simples.
Descrevi a dor de Adão
quando foi expulso do Paraíso.
Escrevi o peso exacto
do sonho de um elefante.
No entanto, passados todos estes anos,
para sobreviver, varro as ruas
e limpo as casas de banho de luxuosos hóteis.
Porquê? Porque reprovei em todos os meus exames.
Porquê? Bom, deixa-me fazer-te um teste.
P1. Quão imensa é a imaginação de uma criança?
P2. Quão vazia é a alma de um examinador?















Brian Patten

(Trad. Miguel Gouveia)

Texto inédito de Beatriz Caetano

Com um apurado gosto pela literatura, pela música e pelas artes em geral, a Beatriz sempre demonstrou uma apetência natural para a escrita. Uma jovem afectuosa e de refinado sentido de humor que nunca nega um sorriso ou uma boa piada.
A Bia participou com este texto num concurso epistolar subordinado ao tema da Tolerância no Mundo. Trata-se de uma carta, escrita num ritmo empolgante e original. Vale a pena ler. Muitas felicidades e muita escrita.
O amigo Emanuel Lima




Vila da Esperança, dia de começar, do ano de agora

Exmº Sr. Alguém-Que-Podes-Ser-Tu,

Venho, por este meio, pedir-te um favor.
Estejas tu longe ou perto, não importa a caminhada, vou ao teu encontro, percorro esta estrada. Apenas te peço uma oportunidade: que me escutes com atenção e humildade.
Suponho que saibas quem sou. Sou aquela menina que agora acordou, que de súbito olhou o mundo e não gostou do que encontrou. Tu, como eu, não o queremos assim. Queremos igualdade e paz para ti e para mim.
Achas que seria pedir de mais que a cor fosse ignorada e o verdadeiro sentimento fosse a coisa mais respeitada? Que tal se a cor fosse insignificante e nos preocupássemos com algo mais importante? Que tal se o homem fosse mais tolerante?
Gostava de te sugerir que, por um dia, todos fôssemos iguais. Será que a atitude não mudava? Será que o nosso frio coração não passava a aceitar? Tenho tanta coisa para te perguntar…
E se por agora a religião fosse esquecida e a nossa causa fosse a união? E se todos os meninos do mundo tivessem uma vontade em comum? E se tanta vaidade se tornasse humildade?
Tens muito por onde começar, a missão está longe de acabar.
Se todos fôssemos mais tolerantes, talvez não houvesse crianças maltratadas, talvez não fossem tão exploradas. Se calhar tantas lágrimas não eram choradas, se calhar tantas atitudes eram evitadas. Talvez a corrupção não fosse a segunda opção, talvez a pobreza tivesse uma solução. Talvez optássemos pela união. Talvez… talvez? Tens resposta para esta questão?
Enquanto tantos sorriem, outros tantos choram, outros tantos agridem e outros imploram. Todos de costas voltadas, nesta pequena bola azul. E se nós chutarmos a indiferença? E se a nossa convicção for uma crença?
Tu tens esse poder … Faz cada um de nós crescer. Faz a tolerância acontecer. Queres um porquê? Eu dou-te o teu porquê: felizmente cresci, e eis que me apercebi… O mundo não era perfeito, grande parte dele a sofrer e eu sem nada fazer. Descobri então que todos éramos um nada, que todos estávamos separados, a lutar por objectivos disparatados.
Se o mundo fosse diferente, uma menina esquecida, num grito de apelo, numa ânsia desmedida, não tinha que escrever um texto a implorar que a prioridade fosse a tolerância, que o que nos move não seja a insignificância.
A verdade é que a oportunidade surgiu … Sei que nem todos falam contigo, sei que nem todos te tratam como um amigo, sei que nem todos conseguem pedir, mas eu peço, não vou fugir. Tenho uma folha na mão, escrevo-te tudo o que me vai no coração. Já não tenho vergonha de falar contigo, vergonha é a resignação, é voltar as costas a quem posso dar a mão. Não quero, outra vez, virar a cara, fingir que tudo está bem, quando alguns nada têm.
Agora que falei contigo sinto-me contente, podemos mudar as coisas falando no presente. O futuro é longe, é apenas um tempo verbal, não sabemos se correrá bem ou mal.
De tolerância em punho, vamos desfilar. O mundo que construímos? Passamos a apresentar: vejo meninas sorrirem de boneca na mão, vejo meninos desenharem um avião. Vejo a mulher respeitada nos direitos que merece e o seu homem amado logo que aparece. Vejo brancos e negros debaixo do mesmo tecto, lares multicolores onde reina o afecto. Para todos comida, para todos medicamentos, para cada um liberdade e alento. As armas guardadas e o rancor esquecido, o que passou… passou, é um inimigo vencido.
Junta-te a este cortejo e traz um amigo.
Caminhamos em frente, num todo unido. Todos remamos no mesmo sentido.

Então não te esqueças: agarra a oportunidade. Tolerância no mundo é a nossa vontade.
Por um mundo melhor, por ti que estás aí.

Com a maior esperança,

Menina número 973848234789838405...

Os Olhos Azuis

A noite desceu rapidamente naquela sexta-feira no fim de Janeiro. O frio intenso, acompanhado de uma chuva miudinha, parecia infiltrar-se até aos ossos, provocando um arrepio permanente e um tom arroxeado na pele mal coberta pelos andrajos que constituíam a roupa de Balbina.
Os cações e as pailonas tinham-lhe dado muito trabalho a arranjar, mas estavam prontos para, no dia seguinte, serem colocados na açoteia, na esperança de que o sol ténue conseguisse romper as nuvens cinzentas e caprichosas que tinham insistido em permanecer nos últimos dias.
Balbina era a quarta filha de um casal que vivia na Rua das Ferrarias e depois dela tinham nascido mais cinco crianças.
O pai dedicava-se à pesca e a mãe, quando lhe sobrava algum tempo das lides domésticas, vendia o produto do trabalho do seu homem a algumas freguesas certas, que conseguiam alguns proventos devido ao comércio a que os seus maridos se dedicavam.
Quando sobrava algum peixe, Balbina e o seu irmão mais velho levavam-no a Moncarapacho, onde o trocavam por algum pão e outros géneros, que cada vez eram mais escassos, devido à permanente usurpação a que as populações do litoral e do campo eram sujeitas por parte da tropa francesa ocupante.
Balbina era moça desempoeirada. Não se pode dizer que fosse bonita. Porém, na frescura dos seus dezanove anos, era uma mulher cobiçada pelos moços da terra. Havia um, que andava ao mar com o seu pai, o Jôquenito, que, quando passava por ela, lhe dirigia galanteios que até a faziam corar, mas ela nunca dissera nada ao pai, pois achava piada ao atrevimento do moço e procurava passar pela casa de entrada, quando ele ia falar com o mano Balé, para saber a hora do aviso.
- Móça ó Balbina, vê lá se te safas do pêxe pa pores o calde ó lume qu’o tê pai e os moces hadem tar a chegar - disse-lhe a mãe, que se encontrava no meio da rua à conversa com a comadre Marquita.
- Já tá tude safe, senhora nha mãe e o calde tá fête má é pôque e pão na hai denhum – respondeu Balbina, limpando à ponta do xaile o pingo que teimava em correr-lhe do nariz.
Quando a mãe entrou em casa, alertou-a para a conversa que tivera com a comadre Marquita. Segundo esta, na noite anterior, a Maria, filha do Manel Besugo, que era amiga da Balbina, fora levada por um grupo de franceses para Faro e, segundo se dizia na terra, “já nã tinha voltade entêra”.
- Tu vê por onde andas, nha filha, na lhes deias óvides nem conversas que tu és uma melher perfêta e podes arranjar um bom home pa t’amparare e servir d’arrime na vida!!...
- Atão e ê nã sê disse, senhora? Teja segada qu’ê cá sê o que face!

Os meses decorriam e as dificuldades avolumavam-se. A tropa francesa cometia cada vez mais roubos e violências. As exigências, feitas à população não paravam de crescer. Os ocupantes pareciam insaciáveis.
Numa noite em que Balbina não conseguia pegar no sono, revolvendo-se no colchão de palha que dividia com as duas irmãs mais novas, ouviu o pai, na casa de entrada, a conversar com o Jôquenito:
- Móce, os engleses tão a poucas léguas da barra e é precise começar a ir lá vender o pêxe e, da volta, trazer debaixe dos empanades uma espingarda ou outra, qu’a gente haverá de correr com estes desgarçades dos franceses que só nos xaringuem.
- Mane Balé, vocemeceia pode contar cómigue! Ê cá ainda sô sózinhe e sô móce pa fazer isse! Vocemeceia tem a ti Albertina mai los filhes todes pa acabar de criar…
- Atão combenade! Amanhã, depoi de chegarmes, tu vás do barque a fazer que vás lá fora levar o estrafegue tode e fazes come combenômes.
-Tá certe, mane Balé! Amanhã começômes…

No dia seguinte, quando o barco chegou, entregaram o peixe para o Prato do Governador e, das sobras, que já eram poucas, seleccionaram alguns besugos e cavalas e o Jôquenito foi buscar uma bateira ali para os lados dos pinheiros de Marim, local previamente combinado.
Quando lá chegou, o seu peito encheu-se de alegria porque, escondida à sua espera, estava Balbina com umas calças de surrobeco e uma camisa do irmão.

- Móça, atão o que fazes tu aqui deste site?
- Atão, tu pensas que ê cá sô parva ou quem? Ê cá ouvi as falas que tu teveste com o mê pai e arresolvi vir contigue! Sus franceses te vêem chegar sozinhe, até são capazes de te matar, ma s’ê cá tever contigue do barque, eles pensem qu’a gente… percebes ó nã m’entendes?
- Nã tá mal pensade, nã senhor! És uma melher prefêta e tamém nã és parva denhuma! Se calhar é per isse qu’ê cá tô embêçade da tua pessoa.
- Móce, té calade com isse qu’ê cá até fequi atarantada!...

Durante cerca de um mês, sempre que possível, os dois jovens faziam a viagem, arriscando a própria vida, mas as armas iam sendo escondidas debaixo de um barco que se encontrava abandonado ao pé do moinho da Barreta, para que ninguém ficasse comprometido.
A amizade e a cumplicidade foi dando lugar a um sentimento mais forte entre eles.
Jôquenito beijou-a numa noite de lua cheia e ela, ao chegar a casa, contou à mãe que já tinha encontrado o homem da sua vida e que não precisava de se preocupar mais com o seu futuro.
Porém, numa noite de final de Maio, quando amarravam a bateira, já no regresso, surgiu um soldado francês que, desconfiado com a situação, os seguia há dias.
- Foge, Jôquenite! Safa-te e nã te dêxes apanhar qu’ê cá m’ê-de arranjar. Sô só tua, pó que der e vier!
Ele, ainda que contrariado, conseguiu fugir com a arma que traziam na bateira.
Ela ficou no local e, não tendo conseguido ser suficientemente rápida para escapar ao francês, foi usada por ele, que se saciou no seu corpo jovem, até que ouviu as vozes de uns homens que passavam por perto.
Balbina ficou escondida, tremendo de medo e vergonha, esperando que o seu companheiro voltasse para a levar para casa.
Durante o caminho de regresso não tocaram no assunto.
Ao chegarem a casa de Balbina, Jôquenito avisou-a de que estava em preparação uma revolta para correr com os franceses de Olhão e que, assim que isso acontecesse, eles casariam na Igreja da Nossa Senhora do Rosário.
No dia 16 de Junho, um soldado francês, fugindo da revolta dos populares frente à Igreja, entrou na Rua das Ferrarias, com alguns homens no seu encalço.
Balbina, que tinha ido a casa esconder os irmãos mais novos, ao reconhecer o soldado francês, gritou para os homens que o perseguiam:
- Parem! Este desgarçade é pra mim!...Vais pagá-las agora, ganda cão!
Dito isto, espetou-lhe no peito o garfo da morraça, que o pai às vezes usava, e estava escondido atrás da porta da entrada.
O soldado caiu inerte e foi espezinhado pelos populares que o cercaram.
- Prantes! Já posse voltar a ser a Balbina, moça séria e trabalhadeira e casar-me da Igreja com o mê Jôquenite!

Passaram-se dois anos e a vida, embora difícil, já não oferecia tantos perigos. Os pescadores olhanenses tinham ido ao Brasil e o lugar de Olhão era, agora, a vila de Olhão da Restauração.
O Mano Balé, nessa noite de S. João de 1809, aconchegou o neto de três meses ao peito e perguntou:
- Móce, ó Jôquenite, ê cá só nã percebe uma côsa. Tu e a nha Balbina são pretes come um tição e come é que o mê Janica tem os olhes azuis e cabelinhe qua branque?
- Côsas da vida, mê sogre! Côsas da vida! – respondeu Jôquenito, apertando Balbina contra o peito.

José João Santos (Conto inédito in Ecos da Ria Formosa)

25 de Abril

Às Forças Armadas e ao povo de Portugal


"Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade"

                                              Jorge de Sena


        Cantiga de Abril

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
e conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitério
toda prisão ou censura.
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerra de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim, altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

  1974

Jorge de Sena


O Berlinde do Janica

As crianças estavam tristes e carrancudas, os berlindes no fundo das algibeiras, as bocas cerradas e firmes. Um sol de inverno fingia afagá-las, convidava-as a saltar, a brincar. Mas ninguém sentia desejos de correr pelo largo que se estendia a seus pés: sentados junto do muro alto que lhes servia de abrigo e de encosto, os miúdos nem sequer fumavam as beatas apanhadas nos dias anteriores pelas ruas e cafés, durante as suas deambulações sem finalidade aparente.
Eram seis, mas, na semana passada, eram sete. O Janica morrera e enterrara-se ao princípio da tarde. Poucos dias estivera doente em casa, fora-se deste mundo quase de repente. Pneumonia dupla, dissera o médico. Como lhes era habitual, assim que saíram do cemitério, os companheiros do Janica dirigiram-se para o sítio preferido, o largo da Feira, enorme e cheio de sol. Afinal, verificaram, angustiados, que não podiam brincar naquele dia nem talvez nos outros: o Janica morrera.
O Álvaro tirou um berlinde colorido da algibeira. Os mocinhos olharam tristemente para aquilo.
- Era do meu irmão…Lembram-se? Deu-me antes de morrer.
Todos sentiram um nó na garganta. Mas Álvaro continuava fitando a pequena esfera de vidro.
- Não sou capaz de brincar com ele. Nã sou. E os seus olhos encheram-se de lágrimas. Os amigos rodearam-no
- Deixa lá, Álvaro – disse o Talica – eu tenho uma ideia. Vamos enterrar o berlinde do Janica.
Acharam o alvitre bom. Próximo dali o terreno era quase arenoso, podiam fazer uma cova sem grande dificuldade. O Toino encontrou um pau pequeno e pontiagudo, começou logo a cavar rapidamente. Um a um todos o ajudaram e abriram uma cavidade estreita e funda. Em seguida Toino colocou um papel de jornal na abertura e empurrou-o até encontrar chão firme. O Álvaro, de mão a tremer, mostrou o berlinde uma vez mais aos companheiros, beijou-o levemente, e empurrou-o com todos os cuidados para dentro do buraco. Todos ouviram, então, o suave baque da queda do objecto sobre o papel. Mas sucedeu uma coisa imprevista e maravilhosa: como se uma força desconhecida os obrigasse a isso, o grupo inteiro tirou os seus berlindes dos bolsos esfarrapados e jogou-os para dentro da cova. Tudo isto num silêncio impressionante, apenas cortado pelo tilintar alegre que veio das entranhas da terra.
Taparam meticulosamente o buraco, calcando bem a terra sob os calcanhares descalços. À superfície não deixaram qualquer aviso. Pelo contrário, durante algum tempo estiveram a destruir todos os indícios de uma escavação recente. Quando sentiram dúvidas acerca do verdadeiro local é que se retiraram novamente para o muro alto e branco e ali se conservavam em silêncio até ao fim da tarde.
António Macheira in Até Amanhã, Meu Filho

Os Livros

Apetece chamar-lhes irmãos,
Tê-los ao colo,
Afagá-los com as mãos,
Abri-los de par em par,
Ver o Pinóquio a rir
E o D. Quixote a sonhar,
E a Alice do outro lado
Do espelho a inventar
Um mundo de assombros
Que dá gosto visitar.
Apetece chamar-lhes irmãos
E deixar brilhar os olhos
Nas páginas das suas mãos.

José Jorge Letria, Pela Casa Fora…, Livros Horizonte