Os Olhos Azuis

A noite desceu rapidamente naquela sexta-feira no fim de Janeiro. O frio intenso, acompanhado de uma chuva miudinha, parecia infiltrar-se até aos ossos, provocando um arrepio permanente e um tom arroxeado na pele mal coberta pelos andrajos que constituíam a roupa de Balbina.
Os cações e as pailonas tinham-lhe dado muito trabalho a arranjar, mas estavam prontos para, no dia seguinte, serem colocados na açoteia, na esperança de que o sol ténue conseguisse romper as nuvens cinzentas e caprichosas que tinham insistido em permanecer nos últimos dias.
Balbina era a quarta filha de um casal que vivia na Rua das Ferrarias e depois dela tinham nascido mais cinco crianças.
O pai dedicava-se à pesca e a mãe, quando lhe sobrava algum tempo das lides domésticas, vendia o produto do trabalho do seu homem a algumas freguesas certas, que conseguiam alguns proventos devido ao comércio a que os seus maridos se dedicavam.
Quando sobrava algum peixe, Balbina e o seu irmão mais velho levavam-no a Moncarapacho, onde o trocavam por algum pão e outros géneros, que cada vez eram mais escassos, devido à permanente usurpação a que as populações do litoral e do campo eram sujeitas por parte da tropa francesa ocupante.
Balbina era moça desempoeirada. Não se pode dizer que fosse bonita. Porém, na frescura dos seus dezanove anos, era uma mulher cobiçada pelos moços da terra. Havia um, que andava ao mar com o seu pai, o Jôquenito, que, quando passava por ela, lhe dirigia galanteios que até a faziam corar, mas ela nunca dissera nada ao pai, pois achava piada ao atrevimento do moço e procurava passar pela casa de entrada, quando ele ia falar com o mano Balé, para saber a hora do aviso.
- Móça ó Balbina, vê lá se te safas do pêxe pa pores o calde ó lume qu’o tê pai e os moces hadem tar a chegar - disse-lhe a mãe, que se encontrava no meio da rua à conversa com a comadre Marquita.
- Já tá tude safe, senhora nha mãe e o calde tá fête má é pôque e pão na hai denhum – respondeu Balbina, limpando à ponta do xaile o pingo que teimava em correr-lhe do nariz.
Quando a mãe entrou em casa, alertou-a para a conversa que tivera com a comadre Marquita. Segundo esta, na noite anterior, a Maria, filha do Manel Besugo, que era amiga da Balbina, fora levada por um grupo de franceses para Faro e, segundo se dizia na terra, “já nã tinha voltade entêra”.
- Tu vê por onde andas, nha filha, na lhes deias óvides nem conversas que tu és uma melher perfêta e podes arranjar um bom home pa t’amparare e servir d’arrime na vida!!...
- Atão e ê nã sê disse, senhora? Teja segada qu’ê cá sê o que face!

Os meses decorriam e as dificuldades avolumavam-se. A tropa francesa cometia cada vez mais roubos e violências. As exigências, feitas à população não paravam de crescer. Os ocupantes pareciam insaciáveis.
Numa noite em que Balbina não conseguia pegar no sono, revolvendo-se no colchão de palha que dividia com as duas irmãs mais novas, ouviu o pai, na casa de entrada, a conversar com o Jôquenito:
- Móce, os engleses tão a poucas léguas da barra e é precise começar a ir lá vender o pêxe e, da volta, trazer debaixe dos empanades uma espingarda ou outra, qu’a gente haverá de correr com estes desgarçades dos franceses que só nos xaringuem.
- Mane Balé, vocemeceia pode contar cómigue! Ê cá ainda sô sózinhe e sô móce pa fazer isse! Vocemeceia tem a ti Albertina mai los filhes todes pa acabar de criar…
- Atão combenade! Amanhã, depoi de chegarmes, tu vás do barque a fazer que vás lá fora levar o estrafegue tode e fazes come combenômes.
-Tá certe, mane Balé! Amanhã começômes…

No dia seguinte, quando o barco chegou, entregaram o peixe para o Prato do Governador e, das sobras, que já eram poucas, seleccionaram alguns besugos e cavalas e o Jôquenito foi buscar uma bateira ali para os lados dos pinheiros de Marim, local previamente combinado.
Quando lá chegou, o seu peito encheu-se de alegria porque, escondida à sua espera, estava Balbina com umas calças de surrobeco e uma camisa do irmão.

- Móça, atão o que fazes tu aqui deste site?
- Atão, tu pensas que ê cá sô parva ou quem? Ê cá ouvi as falas que tu teveste com o mê pai e arresolvi vir contigue! Sus franceses te vêem chegar sozinhe, até são capazes de te matar, ma s’ê cá tever contigue do barque, eles pensem qu’a gente… percebes ó nã m’entendes?
- Nã tá mal pensade, nã senhor! És uma melher prefêta e tamém nã és parva denhuma! Se calhar é per isse qu’ê cá tô embêçade da tua pessoa.
- Móce, té calade com isse qu’ê cá até fequi atarantada!...

Durante cerca de um mês, sempre que possível, os dois jovens faziam a viagem, arriscando a própria vida, mas as armas iam sendo escondidas debaixo de um barco que se encontrava abandonado ao pé do moinho da Barreta, para que ninguém ficasse comprometido.
A amizade e a cumplicidade foi dando lugar a um sentimento mais forte entre eles.
Jôquenito beijou-a numa noite de lua cheia e ela, ao chegar a casa, contou à mãe que já tinha encontrado o homem da sua vida e que não precisava de se preocupar mais com o seu futuro.
Porém, numa noite de final de Maio, quando amarravam a bateira, já no regresso, surgiu um soldado francês que, desconfiado com a situação, os seguia há dias.
- Foge, Jôquenite! Safa-te e nã te dêxes apanhar qu’ê cá m’ê-de arranjar. Sô só tua, pó que der e vier!
Ele, ainda que contrariado, conseguiu fugir com a arma que traziam na bateira.
Ela ficou no local e, não tendo conseguido ser suficientemente rápida para escapar ao francês, foi usada por ele, que se saciou no seu corpo jovem, até que ouviu as vozes de uns homens que passavam por perto.
Balbina ficou escondida, tremendo de medo e vergonha, esperando que o seu companheiro voltasse para a levar para casa.
Durante o caminho de regresso não tocaram no assunto.
Ao chegarem a casa de Balbina, Jôquenito avisou-a de que estava em preparação uma revolta para correr com os franceses de Olhão e que, assim que isso acontecesse, eles casariam na Igreja da Nossa Senhora do Rosário.
No dia 16 de Junho, um soldado francês, fugindo da revolta dos populares frente à Igreja, entrou na Rua das Ferrarias, com alguns homens no seu encalço.
Balbina, que tinha ido a casa esconder os irmãos mais novos, ao reconhecer o soldado francês, gritou para os homens que o perseguiam:
- Parem! Este desgarçade é pra mim!...Vais pagá-las agora, ganda cão!
Dito isto, espetou-lhe no peito o garfo da morraça, que o pai às vezes usava, e estava escondido atrás da porta da entrada.
O soldado caiu inerte e foi espezinhado pelos populares que o cercaram.
- Prantes! Já posse voltar a ser a Balbina, moça séria e trabalhadeira e casar-me da Igreja com o mê Jôquenite!

Passaram-se dois anos e a vida, embora difícil, já não oferecia tantos perigos. Os pescadores olhanenses tinham ido ao Brasil e o lugar de Olhão era, agora, a vila de Olhão da Restauração.
O Mano Balé, nessa noite de S. João de 1809, aconchegou o neto de três meses ao peito e perguntou:
- Móce, ó Jôquenite, ê cá só nã percebe uma côsa. Tu e a nha Balbina são pretes come um tição e come é que o mê Janica tem os olhes azuis e cabelinhe qua branque?
- Côsas da vida, mê sogre! Côsas da vida! – respondeu Jôquenito, apertando Balbina contra o peito.

José João Santos (Conto inédito in Ecos da Ria Formosa)

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