Um Céu sem Anjos de África

À Guilhermina e ao Egídio

Detinha
a menina de cinco anos
tinha pai e tinha mãe
e tinha quatro irmãs, Senhor!

Detinha
a menina de cinco anos
tinha uma filha de retalhos de chita
e fazia duas covinhas de ternura na face
quando sorria, Senhor!

Detinha
a menina de cinco anos
tinha uma filha de ágeis pernas de pano
olhos brilhantes de cabeças de alfinete
e fulvos cabelos de maçarocas maduras
que a febre derradeira da Detinha
não contaminou.

Olhos cerrados suavemente
boneca Detinha dos seus pais
adormeceu de tétano para sempre
mãozinhas postas sobre o peito
um vestido de renda branca
mais um anjo nosso que partiu
no adeus silencioso de boneca
verdadeira num fúnebre berço branco
nossa Detinha tão pura na Munhuana
que até ainda não sabia que era mulata.

Oh! África!
Quantos anjos já nasceram das tuas Munhuanas de amor
e quantas Detinhas partiram para sempre dos teus braços
e quantos filhos inocentes deixaram o teu colo maternal
geraram rios e rios de lágrimas no teu rosto escravizado
e dormiram sem pesadelos na vasta solidão
de um coval mínimo de criança infelizmente
sem as duas covinhas na face
quando sorriam, Senhor?

E ainda não temos um talhão de céu azul para todos
e novamente uma África para amar à nossa imagem
num anjo verdadeiro anjo também cor da nossa pele
e da mesma carne mártir de feitiços estranhos
e o nosso sangue vermelho vermelho quente
como o sangue vermelho de toda a gente.

Para o tal céu de onde existe o tal Deus que não sabe
línguas de África línguas de África línguas de África
e só sorriem anjos de asas impossíveis de arminho
precisamente onde esse arminho só pode ser algodão de sofrimento
ainda não há lugar para meninas puras da cor
das meninas filhas e netas de mães e avós pretas
da nossa Detinha que partiu ainda boneca
e tão pura que ainda não sabia que era mulata.

E brinquedos de trapos não se misturam na Munhuana
com bonecas loiras de sapatos e tudo
porque os pais arianos rezando nas catedrais
não deixam, Senhor!

José Craveirinha
(1956)

É Proibido

É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer,
Ter medo de suas lembranças.
É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,
Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É proibido deixar os amigos
Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,
Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,
Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se lembrar,
Esquecer seus olhos, seu sorriso,
só porque seus caminhos se desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,
Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,
Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É proibido não buscar a felicidade,
Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.

Pablo Neruda



A Paz das Palavras

Não procuro as palavras
mas a paz das palavras.
Como o actor que enfrenta mudo o palco
visto-me de silêncio e oculto sílabas
nas águas calmas do poema.
Cada breve clareira sobre um verbo
é uma janela que me devora mais um verso.

E assim da outra margem apenas sei o que não sei.
Possam os Deuses um dia enfrentar esta renúncia.

Paulo Ramalho in Ofício Imperfeito

Poema 1

Dizem-me que não há poesia na minha terra
Mas eu não me submeto!
A poesia nasce e faz-se.
É só sentir, querer,
Pegar e construir horas.
Dizem-me que não há poemas...
Se ser poeta é viver, amar, lutar
Nós somos poetas.
Se ser poeta é cair, levantar-se
E de novo caminhar,
Nós somos poetas.
Se ser poeta é ser-se livre,
Nós somos livres e somos poetas.
Se a poesia é sol ao alvorecer,
Nós somos poesia.
Se a poesia é rio, estrelas, montanhas
Em tempestades, natureza, ou céus
Despedaçados
Nós somos poesia.
E,
Se somos poesia...
É para vós os poemas que eu canto
Madrugadas do meu país
Poemas de dor e de riso em gargalhadas,
Poemas de força, poemas de mim.

Nagib Said
(Guiné-Bissau)